segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O Desaparecido

Por Wanderley Soares

Não morrer. Morrer nunca. Apenas desaparecer.

Contou-me um amigo, aqui em minha torre, sobre seu pai. Tinha o velho pouco menos de setenta. Aposentado, em gozo do calor amoroso de seus filhos e netos, desfrutava de seu ócio numa rotina que parecia fazê-lo feliz. Todos os dias percorria os mesmos caminhos, numa mesma sequência, em horas sempre iguais. O chimarrão ao nascer da manhã, o café junto ao fogão à lenha, a leitura do jornal. Um livro, um cochilo, uma netinha, um cusco barbudo, uma mexida na terra do pátio ou do jardim. Antes do meio-dia, condenado pela família, um aperitivo com amigos ? jovens e velhuscos, mas iguais ? no tosco boteco da esquina.

As ruas arborizadas permitiam uma vadiagem à sombra, após o almoço. Uma caminhada sem compromisso no entorno do quarteirão. Todos os dias os mesmos movimentos. Com mau tempo ? frio, ventos fortes, muita chuva ? lia livros que ninguém mais lia, que ele mesmo comprava e ninguém comentava. Sorria um sorriso fácil. Contava, sem mágua, suas histórias. Ouvia, com atenção, as coisas que já sabia. Para os que o cercavam, toda a sua vida ali estava e assim se esgotava. Tirante sua ternura, nada mais tinha ele a contribuir, mas somente usufruir o que dos jovens sobrava. Nada mais desejava. Seu presente era a caminhada que, em círculo, realizava.
Num domingo de sol, fim de inverno, a família, como parte de seus costumes, esteve reunida à mesa. O velho senhor cumprira a rotina matinal. Durante o almoço, um cálice de vinho degustado a pequenos goles com a ternura de quem sabe que o vinho é bom quando nele o gosto é sentido como um ato de amor. Depois, o passeio pelo quarteirão. Não levava dinheiro. Nem sequer relógio. Pesavam-lhe apenas a roupa do corpo, suas histórias e seus segredos. Passos firmes, mãos cruzadas às costas, olhos que o tempo apequenou, sempre em despedida. Nas primeiras horas, a esperança; depois, o desespero e o pânico. Muito depois, a angústia e saudade sem fim. Nunca mais foi visto.
Certo acontece isso, em algum momento, com todos nós. Vontade de sair e, em solidão, buscar um lugar onde se possa espiar a nossa própria alma, a da criatura que amamos, a de um amigo ou a de um velho desconhecido em sua caminhada infinita. Vontade de saber dos segredos da felicidade diante do abismo e do medo de contornar a montanha. Vontade de saber se o velho, que todos os dias caminhava em torno do quarteirão, em verdade não passeava simplesmente. Durante anos, talvez desde a sua juventude, ensaiava a sua partida, planejava seu último voo, sempre a espiar na sua própria alma o momento da caminhada final. E não morrer. Morrer nunca. Apenas desaparecer.
Publicado no jornal O SUL, em 19 de setembro de 2010.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A Idade Chega para todos

Já aconteceu de você, ao olhar pessoas da sua idade e pensar: "não posso estar assim tão velho(a)!!!"
Veja o que conta uma moça mais ou menos da nossa idade:
Eu estava sentada na sala de espera para a minha primeira consulta com um novo dentista, quando observei que o seu diploma estava dependurado na parede.
Estava escrito o seu nome e, de repente, recordei de um moreno alto, que tinha esse mesmo nome.
Era da minha classe do colegial, uns 30 anos atrás e eu me perguntava: poderia ser o mesmo rapaz por quem eu tinha me apaixonado à época?
Quando entrei na sala de atendimento imediatamente afastei esse pensamento do meu espírito.
Este homem grisalho, quase calvo, gordo, com um rosto marcado, profundamente enrugado, era demasiadamente velho pra ter sido o meu amor secreto.
Depois que ele examinou o meu dente, perguntei-lhe se ele estudou no Dante Alighieri.
- Sim, respondeu-me.
- Quando se formou? perguntei.
- 1975. Por que esta pergunta? respondeu.
- É que ... bem ... você era da minha classe, eu exclamei.
E então, este velho horrível, cretino, careca, barrigudo, flácido, filho de uma mãe... , me perguntou:
- A senhora era professora de quê?
(Desconheço a autoria)

A Confissão

Um velho padre foi a um jantar de despedida pelos seus 25 anos de trabalho ininterrupto à frente da Paróquia.
Um importante político da região e membro da comunidade, convidado para entregar o presente e proferir um pequeno discurso, atrasou-se.
O sacerdote decidiu proferir umas palavras e disse:
A primeira impressão que tive da paróquia decorreu da primeira confissão que ouvi:
A primeira pessoa que se confessou disse-me que tinha roubado um aparelho de TV, tinha roubado dinheiro aos seus pais, tinha roubado a firma onde trabalhava, e tivera aventuras amorosas com a esposa do patrão.
Dedicara-se ainda ao tráfico de drogas e até tinha transmitido uma doença à própria irmã.

Fiquei assustadíssimo... Pensei que o bispo me tinha enviado para um lugar terrível.
Mas fui confessando mais gente, que em nada se parecia com aquele homem...
Constatei a realidade de uma Paróquia cheia de gente responsável, com valores, comprometida com a sua fé.

Vivi aqui os 25 anos mais maravilhosos do meu Sacerdócio.
Neste momento, chegou o político.
O padre passou-lhe então a palavra.
O político, depois de pedir desculpas pelo atraso, disse:
"Nunca vou esquecer o dia em que o sr. padre chegou à nossa Paróquia.
Como poderia? Tive a honra de ser o primeiro a confessar-me!"

Pois é... Moral da história: NUNCA SE DEVE CHEGAR ATRASADO.
(Desconheço a autoria)

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Martha Medeiros: O último a lembrar de nós

Recentemente li Rimas da Vida e da Morte, do excelente Amós Oz, que narra os delírios de um escritor que, ao participar de um sarau literário, começa a olhar para cada desconhecido na plateia e a criar silenciosamente uma história fictícia para cada um deles, numa inspirada viagem mental. Lá pelas tantas, em determinado capítulo, o autor comenta algo que sempre me fez pensar: diz ele que a gente vive até o dia em que morre a última pessoa que lembra de nós. Pode ser um filho, um neto, um bisneto ou um admirador, mas enquanto essa pessoa viver, mesmo a gente já tendo morrido, viveremos através da lembrança dele. Só quando essa pessoa morrer, a última que ainda lembra de nós, é que morreremos em definitivo, para sempre. Estaremos tão mortos como se nunca tivéssemos existido.

Pra minha sorte, tive poucas perdas realmente dolorosas. Perdi um querido amigo há mais de 20 anos, e perdi uma avó que era como uma segunda mãe. Lembro deles constantemente, sonho com eles, busco-os na minha memória, porque é a única homenagem possível: mantê-los vivos através do que recordo deles. Daqui a 100 anos, ninguém mais se lembrará nem de um, nem de outro, eles não terão mais amigos, netos ou bisnetos vivos, eles estarão definitivamente mortos, e pensar nisso me dói como se eles fossem morrer de novo.

Aquele que compõe músicas, faz filmes, escreve livros, bate recordes ou é um Pelé, um Picasso, um Mozart, consegue uma imortalidade estendida, mas, ainda assim, será sempre lembrado por sua imagem pública, não mais a privada, não mais a lembrança da sua voz ao acordar, da risada, do bom humor ou do mau humor, não mais daquilo que lhe personificava na intimidade. Serão póstumos, mas não farão mais falta na vida daqueles com quem compartilharam almoços, madrugadas, discussões, já que essas testemunhas também não estarão mais aqui.

Alguém me disse: se você acreditasse em reencarnação, nada disso te ocuparia a mente. De fato, não acredito, e mesmo que eu esteja enganada, de que me serve a eternidade sem poder comprová-la? Se sou um besouro reencarnado ou se já fui uma princesa egípcia, que diferença faz? Minha consciência é que me guia, não minhas abstrações. Sou quem sou, sou aquela que pode ser lembrada. Não me conforta ser uma especulação.

É provável que ainda não tenha nascido aquele que será o último a me recordar, a rever minhas fotos, a falar bem ou mal de mim. Nem tive netos ainda. Qual será a data de minha morte definitiva? Não será a do meu último suspiro, e sim a do último suspiro daquele que ainda me carrega na sua lembrança afetiva - ou no seu ódio por mim, já que o ódio igualmente mantém nossa sobrevivência. Cafajestes e assassinos também se mantêm vivos através daqueles que lhes temeram um dia.

Nessa véspera de Finados, queria fazer uma homenagem a ele: ao último ser humano a lembrar de nós, a ter saudade de nós, a recordar nosso jeito de caminhar, de resmungar, o último a guardar os casos que ouviu sobre nós e a reter nossa história particular. O último a pronunciar nosso nome, a nos fazer elogios ou a discordar de nossas ideias. O último a permitir que habitássemos sua recordação. Bendita seja essa criatura, que ainda nos manterá vivos para muito além da vida.

Primeiro Post

Foi a partir de um texto de Martha Medeiros, publicado no Caderno Donna e encartado na Zero Hora, que me interessei em montar um blog pessoal, deixando um pouco de lado a parte profissional, o que me toma quase a totalidade do meu tempo.
Neste texto identifiquei uma conversa que havia tido com minha neta, a Jullia, e que tem apenas 8 anos de idade. Falei com ela sobre a morte, a finitude de uma pessoa, ao que me parece até um tema pesado para se comentar com uma criança. Mas tivemos uma conversa enternecedora, pois lhe falava que com o tempo ela ia acabar quase que se esquecendo de mim, das brincadeiras que temos, dos passeios, do carinho e amor que temos um pelo outro. Claro que não desapareceria de sua vida, mas os momentos que temos juntos serão esquecidos e serei apenas uma vaga lembrança em sua mente, do vô que cuidava dela e não muito mais que isto.
É a lei da vida: todos nos lembramos dos nossos pais, avós, amigos antigos, mas não com a riqueza de detalhes que juntos travamos, risadas, abraços, passeios, brincadeiras e assim por diante. Nos esquecemos de quase tudo, ainda mais passados tanto tempo...
Acima posto o que a Martha Medeiros escreveu. É realmente muito bacana.
Abraços e sucesso. Chico